segunda-feira, 15 de novembro de 2010

A Pátria de Bombachas


FOTOS: Livro "1956 - Uma Epopéia Gaúcha no México", de Eduardo Valls

No dia 18 de março de 1956, o futebol gaúcho conquistou uma de suas maiores vitórias. Nesse dia, a Seleção Brasileira, formada por jogadores gaúchos, empatou em 2 X 2 com a Argentina, no Estádio Olímpico, no México, e conquistou o Campeonato Pan-Americano. A vitória significou o salto definitivo do futebol sulino em direção à maturidade, além da enorme projeção nacional. A equipe titular foi treinada por Francisco Duarte Júnior, o Teté, então técnico do Internacional de Porto Alegre.

Era fim de 1955 quando a notícia chegou: um selecionado gaúcho iria representar o scratch canarinho no 2o Campeonato Pan-Americano. Pouca gente acreditava que essa decisão da CBD (hoje CBF) teria algum futuro. A imprensa carioca dava frouxos de riso. Diziam eles que se um selecionado paulista que também representara o Brasil num certamente sul-americano um pouco antes havia naufragado, qual seria o galardão de um bando de gaúchos, senão a pior das derrotas?

Do meio desse pessimismo, um homem, Aneron Corrêa de Oliveira, resolveu defender a decisão da Confederação: fiasco maior que o paulista não iria acontecer. E a guerra começou. Mário Morais, cronista paulistano, defendia aos quatro ventos que o fiasco era eminente: “Temeridade! Temeridade! Incompetência da CBD!” - diziam. Nunca uma desgraça fora tão cantada aos quatro ventos como essa.

No Sul, começavam as providências: alheio à essas polêmicas, o treinador escolhido para a Seleção foi Teté. Tido como treinador turrão (virtude que lhe fora herdada dos tempos de caserna) e folclórico (já que ele era famoso por lidar com toda a espécie de macumba), sabia como poucos tirar o máximo de seus atletas e trabalhava com um inusitado esquema tático calcado na movimentação dos jogadores de ala, num 4-2-4 que seria futuramente entronizado pelo Brasil na Copa da Suécia.

Porém, mais inusitada foi a expressa determinação de Teté: ao escalar o grupo para o Pan, ele decidiu prescindir de atletas do centro do país. Mesmo com toda a pressão, ele se manteve convicto em seus interesses. Para o certame, convocou oito de seus jogadores do Inter, mais Raul Klein, do Floriano (hoje Novo Hamburgo) Aírton Pavilhão, Ênio Rodrigues, Sérgio Moacir, Ortunho e Juarez, do Grêmio, e Duarte, do Brasil de Pelotas. O “Marechal das Vitórias”, como era conhecido, também foi o criador do terceiro goleiro na seleção. Ele solicitou à CBD a inscrição de um atleta a mais para a defesa, para a disputa. O terceiro homem dos arcos foi Valdir Morais, do extinto Renner de Porto Alegre.

O Brasil estreou num 1o de março. Enquanto todos os países eram representados por suas forças máximas, nossa Seleção era a pátria de bombachas. O Chile, que meses antes, havia goleado a Seleção Paulista com a camisa da CBD acabou perdendo por 2 x 1, gols de Luizinho e Raul.

Na época, o Peru era considerado uma das maiores forças sul-americanas; o México apresentava um futebol considerado razoável porém consistente; a Costa Rica entrou no Pan como a sensação da temporada; mas, como sempre, a mais temida era a Argentina de Dominguez, Cuchiaroni, Sivori, Macchio, Corbata e Ratín. Foi uma exibição fantástica da Seleção Gaúcha, embora Teté fosse pressionado a levar jogadores de Rio e São Paulo, e ele não quis. Disse: “eu não vou levar”. “E levou só jogadores gaúchos”, relembra Larry, que integrava a equipe campeã.

Florindo, beque colorado que participou da conquista no México, recorda do time: “No gol saiu jogando o Sérgio, depois entrou o Valdir. Na lateral direita foi o Oreco, um jogador sensacional, eu como zagueiro central, como quarto-zagueiro o Ênio Rodrigues, lateral esquerdo Duarte, o meio de campo com Ênio Andrade e Odorico. A linha de ataque formada por Luizinho, Larri, Bodinho, Ênio e na ponta-esquerda Raul e depois o Chinesinho. Além destes, o banco de reservas era formado por excelentes atletas, como o zagueiro Aírton e o centroavante Juarez, que jogou todas as partidas no segundo tempo, no lugar do Larr”.

Mas o comandante daquele acratch era o próprio Teté que, com seu ímpeto e estilo de psicólogo do sobrenatural, conseguiu aliciar a todos com seu empirismo de encruzilhada e resolvia qualquer problema, até os que não tivessem muito a ver com o futebol. Se algum jogador aparecesse com alguma dor, ele sempre tinha uma mandinga para curá-lo. Um deles, Juarez, reclamava da canela esquerda. Então o técnico escalou Moura, o massagista, para tratá-lo. Arranjou um vidro com um líquido que, dizia ele, servia para evitar qualquer problema. E aplicava no local machucado, com arruda. Um dia, antes do jogo, o precioso líquido acabou:

“Seu Teté! Seu Teté! A água aquela acabou”, dizia Moura, em pânico, no intervalo do jogo. “O que eu faço?” “Não te preocupa“, disse Teté, disfarçando. “Coloca água da pia mesmo, e diz que é a benzida, que vai dar o mesmo resultado”.

E as vitórias se seguiam. O segundo jogo foi contra o Peru, com um ataque perigoso. Vitória de 1 X 0, com o lateral Oreco e Florindo frustrando as investidas andinas. Contra o México, o Brasil ganhou por 2 X 1, gols de Bodinho e Bravo contra. No dia 13, chegava a hora de enfrentar a sensação, Costa Rica. O selecionado gaúcho deu um baile e meteu sete na “sensação”, com três gols de Larry e três de Chinesinho.

Aliás, Chinesinho foi um caso à parte. Foi convocado por Teté para a ponta-esquerda, que preferiu deixá-lo no banco, em favor de Raul Klein. O treinador alegava que o jogador colorado não mantinha o desempenho ideal. Na verdade, blefava. Foi quando sacou Klein, e foi enfático com o reserva: “o Raul tá jogando que é uma beleza, eu vou te colocar, mas se tu não jogar a partida da tua vida eu não te coloco mais”. E lá foi o ponta colorado defender a sua titularidade. Jogou muito. No fim da partida, Teté disse, em tom de bravata: “o Raul tá jogando muito melhor que tu. Mas eu vou te dar mais uma chance porque tu é do Inter”.

O jogo de fundo era México e Argentina. Se o México vencesse a Argentina, o Brasil já seria campeão, independente do último jogo, porque nós havíamos vencido as quatro partidas, e a Argentina havia empatado uma, e se eles perdessem, ficariam com apenas três pontos. Sabendo disso, Teté fez de tudo para que o México liquidasse os argentinos. Aproveitando a amizade com o treinador do México, o comandante brasileiro chegou perto do homem e confidenciou:

“A gente é tudo vizinho deles, o Rio Grande é fronteira com a Argentina”, argumentava. “O negócio é o seguinte: eles são covardes, eles não agüentam, tem que dar pau neles, que eles se entregam, vocês ganham fácil. Mas tem que dar duro, dar pau neles!”

E não deu outra: o jogo foi um verdadeiro entrudo. Tanto que o número de expulsões do lado fronteiriço ao Brasil acabou beneficiando o scratch. O treinador mandou seus atletas baterem e os dois times terminaram o jogo quase sem plantel...

De repente, veio uma confusão do lado do campo. Gama Moucher, árbitro brasileiro, começou a expulsar gente dos dois times, e dado momento, a Argentina estava com sete jogadores e o México com nove. Mesmo em vantagem, os mexicanos puxaram o carro. Indignado com tamanha indolência, Teté foi reclamar do técnico dos anfitriões: “Tem que ganhar esse jogo! Tem que ganhar, e não empatar!”

E o homem nem bolacha para o brasileiro Foi quando Teté, mesmo sem voz (ele sofria de asma), foi para a lateral do campo, e começou a berrar em castelhano aos atletas mexicanos: “Arriba, pessoal! Arriba! Arranca! Atire no golo!” Não contente, mandou o massagista Moura pedir aos atacantes do México que matassem o jogo. A cena era surreal: os jogadores mexicanos, ao longe, e Tetê na ponta do campo, gesticulando furiosamente em direção ao gol: “Arriba! Arriba!“

Moura, aliás, como braço-esquerdo de Teté, foi o protagonista do episódio mais antológico e pitoresco de todo o Pan. O Brasil jogava contra o Peru que, à época, tinha um ataque fenomenal: Moschera, Félix Castillo e Draco. Era um timaço que disputava cada jogada palmo a palmo do campo. Depois do gol de Larry, aos vinte do primeiro tempo, a pressão peruana se tornava sufocante. Castillo, driblador e veloz batia Duarte com facilidade a cada ataque. Qualquer descuido do lateral brasileiro poderia ser fatal.

Em determinado lance, pelo fundo do campo, Odorico acabou lesionado, e ficou estirado na linha de fundo, sendo atendido por Moura, com sua maleta de madeira. Foi quando tudo aconteceu: enquanto verificava as condições do meio-campista colorado, o massagista sentiu a inexorável aproximação de Félix, que dribla Duarte, depois Ênio Rodrigues e corre sozinho pela linha de fundo com a bola, pronto para fuzilar Sérgio Moacir. Moura não pensa duas vezes, e atirando a pesada maleta aos pés do ponta peruano, fazendo o atleta cair estrepitosamente no gramado.

“Foi uma coisa, queriam prender o Moura”, lembra Larry. “Foi uma coisa horrível, os jogadores do Peru queriam matar ele, e nós tivemos que entrar no bolo para afastar. Foi uma coisa terrível”. Já Florindo entende que a atitude do massagista foi mais do que fundamental: “Foi um bafafá, expulsaram o Moura. Uma coisa que eu posso dizer o seguinte: se não fosse ele, o jogador peruano ia fazer o gol”.

Na final, contra a temida Argentina, Chinesinho fez 1 X 0, e Yaudica empatou, no primeiro tempo. Aos 13 minutos do segundo, de falta, Ênio Andrade fez 2 X 1. Cinco minutos antes do fim, Sívori empatou. Como o resultado garantia o título, os gaúchos só tocaram a bola até a festa.

O time campeão teve Valdir; Florindo e Figueiró (Duarte); Odorico, Oreco e Ênio Rodrigues; Luisinho, Bodinho, Larry, Ênio Andrade e Chinesinho. Na volta, Porto Alegre parou para receber os campeões. Simbolicamente ou não, a epopéia gaúcha com a camisa amarela da Seleção, além de calar os céticos, de certa forma abriu caminho para que o Brasil amealhasse o seu primeiro título mundial, dois anos depois. (O Profeta do Acontecido)

Em pé: Aneron, Vanzelotti, Valdir, Airton, Ortunho, Duarte, Florindo, Sérgio, Ênio Rodrigues, Odorico, Sarará, Figueiró, Oreco, Paulinho, Gama Malcher, Miguel Lardiez e Derly Monteiro. Agachados: Biscardi, Moura, Chinesinho, Hercilio, Milton, LuizinhoBodinho, Larry, Jerônimo, Juarez, Ênio Andrade, Raul Klein e Chicão.
Oreco, de sombreo, junto aos filhos no retorno do México (Foto: Álbum de família)
O capitão Ênio Rodrigues faz aentrega simbólica do troféu Jarrito México, ao presidente Juscelino Kubitschek, no Palácio do Catete.
O presidente da CBD, Silvio Pacheco, está no centro da foto com o troféu Jarrito México.
Maria Felix (primeira da esquerda para a direita)e Leonel Silveira (terceiro da esquerda para a direita), na festa promovida pela Federação Mexicana.
Raul Klein, o cantor Pedro Vargas e Paulinho.
Raul Klein caminha descalço pelas ruas da Cidade do México. Atrás dele estão Chinesinho e o roupeiro Chicão.
Jornal mexicano destaca conquista brasileira.
Em pé: Valdir - Oreco - Figueiró - Florindo - Odorico - Ênio Rodrigues e o massagista Biscardi. Agachados: Luizinho - Bodinho - Larry - Ênio Andrade e Chinesinho.
Aneron Corrêa de Oliveira, presidente da FRGF, Teté e Saturnino Vanzelotti segurando a Taça Zacatepec.
Em pé: Valdir - Oreco - Florindo - Odorico - Ênio Rodrigues e Duarte. Agachados: Luizinho - Bodinho - Larry - Ênio Andrade - Chinesinho e o massagista Biscardi.
Teté segura o troféu entregue pelo time Oro. Quem aparece com o distintivo da FIFA é o árbitro brasileiro Alberto da Gama Malcher
O massagista Moura tenta invadir o campo, na confusão com os mexicanos, mas é impedido pelo bandeirinha.
Em pé: Sérgio - Figueiró - Oreco - Florindo - Odorico e Duarte. Agachados: Luizinho - Bodinho - Larry - Ênio Andrade e Raul Klein.
O cantor Lucho Gatica era presença constante na concentração brasileira. Ao seu lado o atleta Sarará.
Samuel Madureira Coelho, Saturnino Vanzelotti, Luizinho e Derly Monteiro, comemorando.
Defesa do goleiro Sérgio.
Comemoração brasileira pela primeira vitória na competição. No alto aparecem Sérgio, Paloca, Hercilio e Figueiró.
Florindo sai chorando de campo, abraçado pelo massagista Moura.
Em pé: Sérgio - Oreco - Florindo - Odorico - Ênio Rodrigues e Duarte. Agachados: Luizinho - Bodinho - Larry - Ênio Andrade - Raul Klein e os massagistas Biscardi e Moura.
O técnico Teté e o jornalista carioca Fernando Carlos, comandam o pelotão dos jogadores.
Airton e Ortunho carregam a bandeira da CBD.
Ênio Andrade, Figueiró e Raul Klein na companhia de mariachis.

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